Capítulo 1 – Pole Dance do Destino

A vida, por vezes, tem a elegante ironia de um coreógrafo invisível. Brinca connosco, cruza-nos e separa-nos, confunde-nos e provoca-nos, até que, sem aviso prévio, nos coloca diante de alguém que transtorna o equilíbrio da alma. Foi assim que tudo começou com a Júlia.

O cenário, desta vez, foi o ginásio onde costumo treinar sempre que regresso a Portugal. O ginásio é o meu refúgio: aquele espaço onde o ruído do mundo fica lá fora, e cada movimento do corpo se transforma numa oração muda. Quando treino, deixo que a mente se dissolva entre o suor e o esforço; danço ao ritmo da música que ouço, respiro como se o ar fosse uma melodia secreta. Gosto de pensar que, ali dentro, o universo pára e só existo eu. Nesse dia, depois da rotina habitual — força, boxe, alongamentos — entrei na sauna.

E ali, entre o vapor dourado, o destino esperava-me com o seu melhor sorriso travesso.

Ela estava recostada, o cabelo castanho-claro caía com naturalidade sobre os ombros, a pele perolada pelo calor, os olhos semicerrados como se sonhasse acordada. Tinha aquela calma magnética de quem não precisa dizer nada para preencher o espaço. Era uma mulher de traços nórdicos: pele clara, maçãs do rosto levemente rosadas pelo calor, olhos castanhos serenos que lembravam a profundidade de uma tarde de outono em repouso. A sua elegância era natural, sem artifícios, com aquele ar que só as mulheres do norte parecem possuir: uma mistura de força, mistério e doçura contida.

Por um instante, os nossos olhares cruzaram-se, e algo no ar mudou: uma vibração ténue, quase imperceptível, mas impossível de ignorar.

Mantive-me de pé, fingindo indiferença, e comecei os meus alongamentos. Dei-lhe as costas, mas sentia os seus olhos.

Não eram olhares invasivos, mas curiosos, brincalhões. Sempre que me virava na sua direção, desviava o olhar com disfarce. Essa dança silenciosa durou minutos que pareceram eternos.

Até que decidi falar com ela.

Não me lembro das primeiras palavras, apenas do seu sorriso.

Júlia praticava pole dance, contou-me.

Aquilo fascinou-me, sempre tive curiosidade em partilhar intimidade com alguém dotada de tanta flexibilidade, e por um momento a minha mente encheu-se de pensamentos variados, que misturavam curiosidade, admiração e desejo.

Na sua voz havia a confiança de quem conhece a força e a elasticidade do próprio corpo, e a temperança de quem sabe equilibrar beleza e controlo. Ouvia-a e imaginava-a suspensa no ar, a girar em silêncio, dona de uma linguagem que poucos compreendem. O seu sotaque ao falar confirmou o que já intuía: era estrangeira, uma mulher vinda de um desses países que parecem abençoados pela beleza das suas mulheres.

Conversámos como se o destino apenas estivesse à espera que o calor da sauna derretesse as distâncias. Trocamos contactos e ao despedirmo-nos, convidei-a para um social de dança.

Ela sorriu, com aquele gesto entre o talvez e o quem sabe, e disse que pensaria nisso.

Passaram-se os dias.

Poucas mensagens.

Na quarta-feira, uma resposta breve: não poderia ir.

Aceitei sem insistir, com a resignação de quem confia no inevitável.

Mas o destino, esse brincalhão incansável, tinha preparado outra cena.

Nessa noite, ao chegar ao local do social, estacionei o carro e atravessei a avenida.

O ar cheirava a promessa.

E então vi-a. Era ela, a Júlia.

Diante de mim.

Caminhava com passo leve, com o sorriso meio desperto, como se também se surpreendesse por me encontrar ali. Por um instante, o tempo prendeu a respiração. As luzes, os carros, as vozes… tudo parou. Sorri-lhe e ela retribuiu com uma doçura curiosa, como quem não esperava, mas gostou de encontrar-me ali.

Abracei-a, e ela correspondeu com naturalidade, como se o corpo recordasse algo que a mente ainda não sabia.

Disse-me que estava por ali, que tinha saído à procura de uma gata que lhe escapara. Não era dela, explicou-me, e talvez por isso se sentisse ainda pior; tinha saído com a esperança de a encontrar, movida por uma mistura de ternura e culpa.

Dentro do bar não havia festa, tinha sido cancelada.

O meu amigo confirmou-mo.

Então, rindo, começámos a caminhar sem rumo certo, partilhando pequenas confissões e silêncios confortáveis. Por momentos, pegava-lhe na mão, e era evidente que ela gostava desse gesto. Caminhámos assim, até chegar perto do seu carro.

Antes de lá chegar, propus-lhe, quase sem pensar:

— Podemos dançar aqui, se quiseres.

— E tens música? — perguntou-me, com uma centelha desafiante nos olhos.

— Sempre.

Pus uma música. Não me lembro qual. Apenas do compasso lento que começou a envolver-nos.

Peguei-lhe nas mãos.

E o mundo reduziu-se ao breve espaço entre a sua respiração e a minha.

Dançámos sob a noite. Sem luzes.

Sentia que, de alguns prédios altos, certos olhares curiosos nos observavam em silêncio, talvez invejando aquele instante, desejando estar no nosso lugar. Porque, sem dúvida, irradiávamos felicidade.

Era um público oculto e silencioso, testemunha involuntária de um momento que não se repetiria.

Durante a dança, o seu corpo aproximava-se do meu com uma naturalidade que não pedia licença.

A música entrelaçava-nos, cosia-nos a alma por uns minutos eternos.

Rodámos. Tocámo-nos.

E, entre o vaivém do desejo contido, roubei-lhe um beijo.

Foi leve, trémulo… um beijo que não procurava possuir, mas reconhecer.

Como se o universo, cansado de brincar, sussurrasse:

— Agora é a vossa vez de dançar.—

Mas o tempo, como um guerreiro que volta a impor a sua lei, apresentou-se diante de nós com um sorriso irónico, como quem diz: “Aqui mando eu.”

Lembrou-me da viagem do dia seguinte, das malas por fazer, do relógio a troçar de mim.

Ela compreendeu sem palavras.

Olhámo-nos com aquela clareza que só existe quando se sabe que algo grande acaba de começar, mas ainda não deve continuar.

Despedimo-nos com um sorriso suspenso no ar.

E enquanto a via afastar-se, tive a certeza de que o destino e o tempo riam-se lá do alto, brindando à sua travessura. Porque há encontros que não se procuram, há beijos que só acontecem uma vez, e há danças que, mesmo durando um minuto, ficam a dançar dentro de nós para sempre.

” O primeiro passo foi dado… e a dança ainda tem continuação… “

Leave a comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *